TREZENTAS ONÇAS
"Simões Lopes Neto"
Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de
escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste
mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem! ... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos
vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no
lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda. Despertando,
ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o
pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui - me à
água que nem capincho! Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas
quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha
para um bom nado. E sólito e no silêncio, tornei a vestir - me, encilhei o
zaino e montei. Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo
ainda, obra assim de braça e meia de sol. Ah!…esqueci de dizer - lhe que andava
comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das
crianças, mas às vezes dava - me para acompanhar - me, e depois de sair a
porteira, nem por nada fazia cara - volta, a não ser comigo. E nas viagens
dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite... Mas isto é outra cousa; vamos ao caso. Durante a
troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava - se na estrada e latia e
corria pra trás, e olhava - me, olhava - me, e latia de novo e troteava um
pouco sobre o rastro; parecia que o
bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar - me,
para dai a pouco recomeçar. Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé
em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as — boas - tardes! — ao dono
da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da
guaiaca! Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de
gados que ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns
coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro... Eu era
mui pobre — e ainda hoje, é como vancê sabe...; estava começando a vida, e o
dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e
brabo como uma manga de pedras... Assim, de meio assombrado me fui repondo
quando ouvi que indagavam: Então patrício?
está doente? Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma
desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão... A la fresca!... É verdade...
antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!... É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine,
homem! Nisto o cusco brasino deu uns
pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a
estrada, aos latidos. E olhava - me, e vinha e ia, e tornava a latir... Ah!...
E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da
sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de
uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de
cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei
espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que
subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo. Estava lá, na
beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes
que outros andantes passassem. Num vu estava a cavalo; e mal isto, o
cachorrinho pegou a retouçar, numa alegria, ganindo — Deus me perdoe! — que até
parecia fala. E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado. Ali logo frenteei
com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e que por certo
vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do
sombreiro; uns quantos vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma
coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua. Amaguei o corpo e
penicando de esporas, toquei a galope largo. O cachorrinho ia ganiçando, ao
lado, na sombra do cavalo, já mui comprida. A estrada estendia-se deserta; à
esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados
pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se
arrolhando nos paradouros da noite; à direita, o sol, muito baixo,
vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Nos
atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava
de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia
de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um
joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida
triste, em que a gente também não sacode os braços... Foi caindo uma aragem
fresca; e um silêncio grande, em tudo. O zaino era um pingaço de lei; e o
cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé,
troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete
levantavam. E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de
incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois; cerrou a noite escura;
depois, no céu, só estrelas..., só estrelas... O zaino atirava o freio e gemia
no compasso do galope, comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as
Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar...,
lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me da
minha mãe, de meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as
conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias. Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida
rindo...; Deus o conserve!…, sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos
quando o coração pena!... Há que tempos
eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando,
subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no
arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água
perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!... Por entre as minhas lágrimas, como um sol
cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus
pagos: Quem canta refresca a alma, Cantar adoça o sofrer; Quem canta zomba da
morte: Cantar ajuda a viver!... Mas que cantar, podia eu!... O zaino respirou
forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha
reconhecido o lugar, estava no passo. Senti o cachorrinho respirando, como
assoleado. Apeei-me. Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do arvoredo,
metia respeito... que medo, não, que não entra em peito de gaúcho. Embaixo, o
rumor da água pipocando sobre o pedregulho; vaga-lumes retouçando no escuro.
Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a
pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados,
mais pra lá, mais pra cá...; nada! nada!... Então, senti frio dentro da alma…,
o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia
lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!... E logo uma tenção
ruim entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha
daquela suposição. É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!
Tirei a pistola do cinto; armei-lhe o gatilho..., benzi-me, e encostei no
ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala... Ah! patrício! Deus
existe!... No refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as
Três-Marias luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado,
estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na
barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo
retinia ali perto, num oco de pau!...
Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no
luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos
arredarem de mim a má tenção... O cachorrinho tão fiel lembrou - me a amizade
da minha gente; o meu cavalo lembrou - me a liberdade, o trabalho, e aquele
grilo cantador trouxe a esperança... Eh - pucha! patrício, eu sou mui rude... a
gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora,
estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz
de Deus por todos os lados!... E já todo no meu sossego de homem, meti a
pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar. E fui
pensando. Tinha, por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido
as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como explicar o sucedido,
comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a
ponta de gado manso tirando umas
leiteiras para as crianças e a junta dos jaguanés lavradores — vender a
tropilha dos colorados… e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso
mermasse a conta..., enfim, havia se ver o jeito a dar... Porém matar - se um
homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não! E d’espacito vim
subindo a barranca; assim que me sentiu o zaino escarceou, mastigando o
freio. Desmaneei - o, apresilhei o
cabresto; o pingo agarrou a volta e eu montei, aliviado. O cusco escaramuçou,
contente; a trote e galope voltei para a estância. Ao dobrar a esquina do
cercado enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino
relinchou alegremente, sentindo os companheiros; do potreiro outros relinchos
vieram. Apeei - me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se
rebolcou, com ganas. Então fui para dentro: na porta dei o Louvado seja Jesu - Cristo; boa-noite! e
entrei, e comigo, rente o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quatro
paisanos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo. Em cima
da mesa a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana,
estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças, dentro.
Louvado seja Jesu-Cristo, patrício! Boa-noite! Entonces, que tal le foi de
susto?... E houve uma risada grande de gente boa. Eu também fiquei-me rindo,
olhando para a guaiaca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés...
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